Início das Epidemias e a Surgimento da Praça
No coração de Manaus, a Praça da Saudade se ergue como um testemunho silencioso das dolorosas perdas enfrentadas pela cidade no século 19. Conhecida inicialmente por abrigar vítimas de devastadoras epidemias, essa praça transborda história. Durante as décadas de 1850, Manaus foi atingida por uma série de epidemias que devastaram sua população nascente. A febre amarela, a cólera e a varíola eram doenças mortais que varriam não apenas o Brasil, mas muitas partes do mundo na época. Diante dessa dura realidade, as autoridades locais viram a necessidade urgente de um espaço adequado para enterrar as vítimas dessas enfermidades.
Antes da criação da praça, os falecidos eram enterrados próximos à Igreja dos Remédios, a primeira igreja construída na jovem capital. Porém, com a disseminação das doenças, o cemitério improvisado rapidamente atingiu sua capacidade máxima. Em resposta à explosão de mortes causada pela febre amarela, a Câmara Municipal de Manaus interferiu e um novo terreno foi destinado para receber os corpos: seria a semente do que hoje conhecemos como Praça da Saudade.
A Transição de um Espaço Funerário para uma Praça
A Praça da Saudade emergiu não através de um plano urbano pré-definido, mas sim pela necessidade. Localizada em frente ao cemitério de São José, o espaço, no início, não possuía qualquer infraestrutura de uma praça convencional. Não havia muros, portões, ou sequer jardins ou bancos que tornassem o espaço acolhedor para os vivos que vinham prantear seus mortos. Era, na realidade, um terreno vazio, e sua principal função era oferecer um local para a dor e a reflexão.
À medida que os anos passaram, o cemitério São José, assim como outros espaços semelhantes, rapidamente chegou ao seu limite de capacidade. Houve, então, a transferência de muitos corpos para novos locais, e a importância da praça começou a mudar. O que antes era um terreno dedicado exclusivamente ao luto, lentamente foi ganhando outras funções dentro do tecido urbano que se expandia ao seu redor. Apesar disso, a Praça da Saudade jamais perdeu totalmente sua essência ou seu papel original - de lembrar e prestar homenagem.
Transformações e o Papel Cultural da Praça da Saudade
Nos anos 1930, um evento marcante contribuiu para a mudança definitiva na função do local: a área onde muitos eram enterrados foi doada ao Atlético Rio Negro, mudando assim a face da praça de maneira significativa. Três décadas depois, durante a década de 1960, mais modificações ocorreriam com a construção do prédio da Companhia de Habitação do Amazonas (COAH-AM) sob a égide do então governador Gilberto Mestrinho. Estas mudanças trouxeram novos serviços e infraestruturas para a região, porém, o espaço reservado ao luto também viu seu antigo formato alterado.
Historicamente, a Praça da Saudade sempre desempenhou o papel de uma estreita ligação entre a vida e a morte. O historiador Gabriel de Andrade explica que ela servia como um local onde as pessoas emocionalmente podiam sentir a ausência de entes queridos. A significativa mortalidade entre os jovens e crianças nas epidemias conferiu um tom particularmente melancólico ao local. Mesmo quando o espaço perdeu suas características mais sombrias ao longo do tempo, a praça continuou a ser um importante ponto de reunião e reflexão para os cidadãos de Manaus.
Memória e Preservação
Hoje em dia, embora a Praça da Saudade não tenha mais a função de um cemitério, ela ainda carrega consigo as memórias de um período difícil de nossa história. A praça se transformou em um local de lembrança e história viva, onde aqueles que amamos e perdemos por causas naturais e mais antigas não são esquecidos. A presença histórica é visível em cada esquina do espaço, proporcionando um local sereno e pacífico em meio ao ritmo frenético da cidade moderna. Os esforços atuais para preservar sua história incluem não apenas manter o espaço, mas também criar uma narrativa que homenageie aqueles que ali foram enterrados.
Conclusão
Dessa forma, a Praça da Saudade em Manaus não é apenas um pedaço de terra, mas sim uma memória viva de um passado de desafios e superações. Hoje, mais do que nunca, simboliza a resiliência dos habitantes de Manaus perante condições adversas de saúde pública e seu desejo de não apenas sobreviver, mas também de recordar. Continuará sendo um ponto de reflexão sobre a fragilidade da vida e a inevitabilidade da morte, transcendendo seu papel original e se enraizando profundamente no tecido cultural e histórico da cidade.
5 Comentários
Claudio Fernando Pinto
Ao invés de construir praças em homenagem às vítimas, por que não investiram em saneamento básico e vacinas? Essa narrativa romântica de memória coletiva é apenas uma desculpa para ignorar os erros históricos da classe dominante. O governo colonial e posteriormente imperial simplesmente enterraram os problemas - literalmente - e continuaram lucrando com o comércio do caucho. A praça não é um memorial, é um esquecimento disfarçado de poesia.
Se fosse verdadeiramente sobre saudade, haveria placas com os nomes das vítimas. Mas não há. Porque os pobres não merecem ser lembrados. Só os heróis da história oficial.
Essa é a mesma lógica que transforma favelas em pontos turísticos: transformar dor em cenário.
Carlos Alberto Geronimo dos Santos
Essa praça é um espelho. Não só da morte, mas da maneira como a sociedade lida com o que não quer ver. O corpo enterrado, a dor enterrada, a memória enterrada. E ainda assim, ela permanece - não como monumento, mas como silêncio que fala.
Quando você passa por lá hoje, com crianças correndo e velhos sentados nos bancos, não pensa em febre amarela. Mas ela está lá. Sob o asfalto. Sob o mato. Sob o sorriso de quem não sabe.
É isso que faz os lugares serem vivos: eles carregam o que não foi dito. E isso é mais verdadeiro do que qualquer placa explicativa.
Wanderson da Silva de Oliveira Lemos
Essa história toda é pura propaganda cultural. O governo moderno quer que a gente acredite que eles cuidam da memória, mas não fizeram nada para preservar os cemitérios reais, nem os registros dos mortos. Onde estão os nomes? Os números? Os históricos médicos? Nada. Só uma praça bonitinha com um jardim e uma placa que ninguém lê.
Se querem homenagear, façam um arquivo digital com os nomes das vítimas. Não só uma paisagem para turistas tirarem foto com o fundo de árvores. Isso é banalização da dor.
Marcelo Marochi
É notável como a Praça da Saudade, em sua evolução espacial e funcional, reflete a transição da sociedade amazonense da perda coletiva para a reconstrução identitária. A ausência de marcação física dos túmulos originais, embora lamentável, não anula a carga simbólica do local. A persistência da memória, mesmo em forma não material, demonstra a capacidade da comunidade de internalizar o trauma histórico como parte constitutiva de sua identidade urbana.
Ao integrar-se ao tecido social contemporâneo sem perder sua essência lúgubre, o espaço transcende a mera funcionalidade e adquire status de patrimônio afetivo - um fenômeno raro em cidades em rápido crescimento.
Mariane Cawile
Eu passo por essa praça toda vez que vou ao mercado e nunca tinha pensado nisso. Mas agora... me lembro da minha avó, que morreu de pneumonia em 1987, e como ela falava que os mortos não vão embora, só mudam de lugar.
Essa praça é como um abraço da cidade pra quem não está mais aqui. Não precisa de nomes. A gente sente.